quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Casamento



*

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não.
A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.


Texto extraído do livro 'Adélia Prado - Poesia Reunida', Ed. Siciliano - São Paulo, 1991, pág. 252.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Ausência



Apenas se te deixar
venhas até mim,
cristalina ou temerosa
inquieta, ferida por mim mesmo
ou satisfeita de amor, como quando teus olhos
se fecham sobre o dom da vida
que sem parar, te entrego

amor meu,
nos encontramos
sedentos e nos bebemos
toda água e sangue.
Nos encontramos
com fome
e nos mordemos
como o fogo morde
deixando-nos feridas;

Porém, espera-me
guarda-me a tua doçura.

Eu te darei também uma rosa.


(Pablo Neruda)

Por ti



Por ti junto aos jardins cheios de flores novas me doem
os perfumes da primavera.
Esqueci o teu rosto, não me lembro de tuas mãos,
como beijavam os teus lábios?

Por ti amo as brancas estátuas adormecidas nos parques,
as brancas estátuas que não têm voz nem olhar.
Esqueci tua voz, tua voz alegre, me esqueci dos teus olhos.
Como uma flor a seu perfume, estou atado à tua lembrança imprecisa.

Estou perto da dor como uma ferida, se me tocas me farás um dano irremediável.
Não me lembro mais do teu amor e no entanto te adivinho atrás de todas as janelas.

Por ti me doem os pesados perfumes do estio: por ti volto a espreitar
os signos que precipitam os desejos, as estrelas em fuga, os objetos que caem.




Pablo Neruda