quarta-feira, 30 de abril de 2008
Se cada dia cai
Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.
há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.
Pablo Neruda (Últimos Poemas)
Poeminha sentimental
O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.
Mario Quintana - Preparativos de Viagem
Poema da Gare de Astapovo
O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
(Mario Quintana)
Pequeno esclarecimento
Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio - um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.
(Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo)
Canção do amor imprevisto
Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoísta e mau.
E a minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.
Mas tu apareceste com a tua boca fresca de madrugada,
Com o teu passo leve,
Com esses teus cabelos...
E o homem taciturno ficou imóvel, sem compreender
nada, numa alegria atônita...
A súbita, a dolorosa alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos.
Mario Quintana
Antes
Antes de amar-te, amor, nada era meu
Vacilei pelas ruas e as coisas:
Nada contava nem tinha nome:
O mundo era do ar que esperava.
E conheci salões cinzentos,
Túneis habitados pela lua,
Hangares cruéis que se despediam,
Perguntas que insistiam na areia.
Tudo estava vazio, morto e mudo,
Caído, abandonado e decaído,
Tudo era inalienavelmente alheio,
Tudo era dos outros e de ninguém,
Até que tua beleza e tua pobreza
De dádivas encheram o outono.
Pablo Neruda
A rosa de Hiroxima
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
(Vinícius de Moraes)
Serenata do adeus
Ai, a lua que no céu surgiu
Não é a mesma que te viu
Nascer dos braços meus...
cai a noite sobre o nosso amor
E agora só restou do amor
Uma palavra: adeus...
Ai, vontade de ficar
Mas tendo de ir embora...
Ai, que amor é se ir morrendo
Pela vida afora
É refletir na lágrima
O momento breve
De uma estrela pura
cuja luz morreu...
Ò mulher, estrela a refulgir
Parte, mas antes de partir
Rasga o meu coração...
crava as garras no meu peito em dor
E esvai em sangue todo o amor
Toda a desilusão...
Ah, vontade de ficar
Mas tendo de ir embora...
Ai, que amar é se ir morrendo
Pela vida afora
É refletir na lágrima
O momento breve
De uma estrela pura
cuja luz morreu
Numa noite escura
Triste como eu...
(Vinícius de Moraes)
Soneto de fidelidade
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
(Vinícius de Moraes)
terça-feira, 29 de abril de 2008
Despedida
Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces ? - me perguntarão.
- Por não Ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras ? Tudo. Que desejas ? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão !
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão.
Cecília Meireles
Barcos de Papel
Quando a chuva cessava e um vento fino
franzia a tarde tímida e lavada
eu saía a brincar pela calçada
nos meus tempos felizes de menino.
Fazia de papel toda uma armada:
e estendendo o meu braço pequenino
eu soltava os barquinhos sem destino
ao longo das sarjetas na enxurrada...
Fiquei moço. E hoje sei pensando neles
que não são barcos de ouro os meus ideais:
são feitos de papel tal como aqueles
perfeitamente exatamente iguais...
- Que os meus barquinhos lá se foram eles!
Foram-se embora e não voltaram mais!
Guilherme de Almeida
segunda-feira, 28 de abril de 2008
Retrato do Poeta Quando Jovem
Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
(José Saramago)
Anonimato
Parábola
Dionisios Ares Afrodite
Solidão
Tecendo a Manhã
2.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
João Cabral de Melo Neto
Amar
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
Amar solenemente as palmas do deserto,
Este o nosso destino: amor sem conta,
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
Carlos Drummond de Andrade
Epigrama N° 11
domingo, 27 de abril de 2008
Auto-retrato
No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!
Mario Quintana
sexta-feira, 25 de abril de 2008
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio
*
Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
Odes de Ricardo Reis - Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio
Lápide 2: epitáfio para a alma
quinta-feira, 24 de abril de 2008
Morte absoluta
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
Morrer tão completamente
Morrer mais completamente ainda,
Manuel Bandeira
Minha grande ternura
Minha grande ternura
Manuel Bandeira
Poética
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Manuel Bandeira
segunda-feira, 21 de abril de 2008
Quadras
já não vai ficando nada:
é menos do que o perfume
de uma rosa desfolhada.
Passarinho ambicioso
fez nas nuvens o seu ninho.
quando as nuvens forem chuva,
pobre de ti, passarinho.
só não toca no teu rosto
que está no meu coração.
Os ramos passam de leve
na face da noite azul.
É assim que os ninhos aprendem
que a vida tem norte e sul.
por ser cantada morreu.
Nunca hei de dizer o nome
Daquilo que há de ser meu.
Ao lado da minha casa
morre o sol e nasce o vento.
O vento me traz o seu nome,
leva o sol meu pensamento.
(Cecília Meireles)
sexta-feira, 18 de abril de 2008
O Estrangeiro
- Diga, homem enigmático, de quem gosta mais? De seu pai, de sua mãe, de sua irmã ou de seu irmão?
- Não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.
- Amigos?
- Você usa de palavras cujo sentido até aqui desconheço.
- Pátria?
- Ignoro a que latitude se situa.
- Beleza?
- Deusa e imortal, de bom grado a amaria.
- O ouro?
- Odeio-o como você odeia a Deus.
- Mas que gosta então, estrangeiro extraordinário?
- Das nuvens... as nuvens que passam... lá longe... lá longe... as maravilhosas nuvens!
Charles Baudelaire
.
Quando Febo esculpia as estátuas na luz.
Ligeiros, Macho e fêmea, fiéis ao som da lira,
Ali brincavam sem angústia e sem mentira,
E, sob o meigo céu que lhes dourava a espinha,
Exibiam a origem de uma nobre linha.
Cibele , então fecunda em frutos generosos,
Nos filhos seus não via encargos onerosos:
Qual loba fértil em anônimas ternuras,
Aleitava o universo com as tetas duras.
Robusto e esbelto, tinha o homem por sua lei
Gabar-se das belezas que o sagravam rei,
Sementes puras e ainda virgens de feridas,
Cuja macia tez convidava às mordidas!
Quando se empenha o Poeta em conceber agora
Essas grandezas raras que ardiam outrora,
No palco em que a nudez humana luz sem brio
Sente ele n'alma um tenebroso calafrio
Ante esse horrendo quadro de bestiais ultrajes.
Ó quanto monstro a deplorar os próprios trajes!
Ó troncos cômicos, figuras de espantalhos!
Ó corpos magros, flácidos, inflados, falhos,
Que o deus utilitário, frio e sem cansaço,
Desde a infância cingiu em suas gases de aço!
E vós, mulheres, mais seráficas que os círios,
Que a orgia ceva e rói, vós, virgens como lírios,
Que herdaram de Eva o vício da perpetuidade
E todos os horrores da fecundidade!
Possuímos, é verdade, impérios corrompidos,
Com velhos povos de esplendores esquecidos:
Semblantes roídos pelos cancros da emoção,
E por assim dizer belezas de evasão;
Tais inventos, porém, das musas mais tardias
Jamais impedirão que as gerações doentias
Rendam à juventude uma homenagem grave
- À juventude, de ar singelo e fronte suave,
De olhar translúcido como água de corrente,
E que se entorna sobre tudo, negligente,
Tal qual o azul do céu, os pássaros e as flores,
Seus perfumes, seus cantos, seus doces calores.
Charles Baudelaire
Reinvenção
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Cecília Meireles
Noções
Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.
Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.
Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...
Cecília Meireles
Timidez
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
- mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...
- palavra que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...
e um dia me acabarei.
Cecília Meireles
quinta-feira, 17 de abril de 2008
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quarta-feira, 16 de abril de 2008
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Quinze dias ainda e mais de seis semanas
já se foram! No ror das angústias humanas,
a angústia mais cruel é viver separado!
Trocam-se as expressões de um amor dedicado,
sempre evocando o olhar, os gestos e a voz pura
daquela, cujo amor faz a nossa ventura.
Fica-se a conversar com o espírito da ausente;
mas tudo o que se pensa e tudo o que se sente,
e o que se fala à ausente, enfim, tudo, persiste
num tom de palidez imutável e triste.
Oh! a ausência fatal! a suprema desdita!
E a gente ver consolo em uma frase escrita...
Ir buscar, no infinito horror do pensamento,
com que vos levantar, sonhos, do abatimento,
porém, nada trazer que a amargo não resume!
E depois, como um frio e penetrante gume,
sulcando mais veloz que uma bala violenta,
ou que as aves cortando um marouço em tormenta,
e trazendo um veneno à ponta de uma lança,
eis que o peito nos flecha a horrível Desconfiança,
arrojada por uma estúpida Incerteza!
Não é isso mesmo? Enquanto eu, apoiado à mesa,
vou lendo a sua carta (e o pranto já começa),
doce carta em que vem uma doce promessa,
ela não estará noutras cousas pensando?
Quem sabe? Enquanto eu vou neste exílio rolando,
como um rio tristonho e de margem sombria,
o seu lábio, talvez, inocente sorria?
Talvez ela me esqueça ou viva mais contente?
E eu a carta reli, melancolicamente.
Paul Verlaine
Poema em Linha Reta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Fernando Pessoa
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Os homens são todos um.
Passam por mim mutilados,
Sem ritmo, cor nem alento,
Os bens da terra circulam
Murilo Mendes
Poema Dialético - Parte 4
Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:
terça-feira, 15 de abril de 2008
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O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá
Trecho de : O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá
*
(...)
É sempre rápido o tempo da felicidade. O Tempo é um ser difícil. Quando queremos que ele se prolongue, seja demorado e lento, ele foge às pressas, nem se sente o correr das horas.
Quando queremos que ele voe mais depressa que o pensamento, porque sofremos, porque vivemos um tempo mau, ele escoa moroso, longo é o desfilar das horas.
Curto foi o tempo do Verão para o Gato e a Andorinha. Encheram-no com passeios vagabundos, com longas conversas à sombra das árvores, com sorrisos, com palavras murmuradas, com olhares tímidos, porém expressivos, com alguns arrufos também...
Não sei se arrufos será a palavra precisa. Explicarei: por vezes a Andorinha encontrava o Gato abatido, de bigodes murchos e olhos ainda mais pardos. A causa não variava: a Andorinha saíra com o Rouxinol, com ele conversara ou tivera aula de canto — o Rouxinol era o professor. A Andorinha não compreendia a atitude do Gato Malhado, aquelas súbitas tristezas que se prolongavam em silêncios difíceis. Entre ela e o Gato jamais havia sido trocada qualquer palavra de amor, e, por outro lado, a Andorinha, segundo disse, considerava o Rouxinol um irmão.
Um dia — dia em que a aula de canto se prolongara além do tempo costumeiro —, quando os bigodes do Gato estavam tão murchos que tocavam o solo, ela lhe pediu explicação daquela tristeza. O Gato Malhado respondeu:
— Se eu não fosse um gato, te pediria para casares comigo...
A Andorinha ficou calada, num silêncio de noite profunda. Surpresa? – não creio, ela já adivinhara o que se passava no coração do Gato. Zanga? – não creio tampouco, aquelas palavras foram gratas ao seu coração. Mas tinha medo. Ele era um gato, e os gatos são inimigos irreconciliáveis das andorinhas.
Voou rente sobre o Gato Malhado, tocou-o de leve com a asa esquerda, ele podia ouvir as batidas do pequeno coração da Andorinha Sinhá. Ela ganhou altura, de longe ainda o olhou, era o último dia de Verão.
Versos Íntimos
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
(Augusto dos anjos)
segunda-feira, 14 de abril de 2008
Fanatismo
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
“Tudo no mundo é frágil, tudo passa... ”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim! ... ”
(Florbela Espanca)
Eu ia, os punhos nos meus bolsos furados;
Meu paletó também se tornava ideal;
Ia sob o céu, Musa! eu te era leal;
Oh! lá lá! quantos esplêndidos amores foram sonhados!
Minhas únicas calças tinham um largo remendo.
— Pequeno-Polegar sonhador, semeava na minha corrida
Rimas. A Ursa Maior me dava a acolhida.
— Minhas estrelas no céu sussurravam tremendo.
E eu as escutava, sentado à beira das estradas,
Nestas boas noites de setembro sentia gotas amadas
De orvalho na minha fronte, como de um vinho a canção;
Onde, rimando entre vultos fantásticos,
Como liras, eu puxava os elásticos
De meus sapatos feridos, um pé perto do meu coração!
Arthur Rimbaud
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa