sábado, 31 de maio de 2008

De passarinhos


Para compor um tratado sobre passarinhos
É preciso por primeiro que haja um rio com árvores
e palmeiras nas margens.
E dentro dos quintais das casas que haja pelo menos goiabeiras.
E que haja por perto brejos e iguarias de brejos.
É preciso que haja insetos para os passarinhos.
Insetos de pau sobretudo que são os mais palatáveis.
A presença de libélulas seria uma boa.
O azul é muito importante na vida dos passarinhos.
Porque os passarinhos precisam antes de belos ser eternos.
Eternos que nem uma fuga de Bach.

Manoel de Barros

Poema



A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias ( do mundo e as nossas ).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco pra elogios.

Manoel de Barros

terça-feira, 27 de maio de 2008

O Exemplo das Rosas


Uma mulher queixava-se do silêncio do amante:
- Já não gostas de mim, pois não encontras palavras para me louvar!
Então ele, apontando-lhe a rosa que lhe morria no seio:
- Não será insensato pedir a esta rosa que fale?
Não vês que ela se dá toda no seu perfume?

Manuel Bandeira

sexta-feira, 23 de maio de 2008

O Açúcar


Foto de: Diego Padgurschi

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pela, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem
aos vinte e sete anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.

Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.


(Ferreira Gullar)

Poema



Se morro
o universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
se apago a lâmpada:
os sapatos-da-ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó-
dos-andes,
bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
morrem comigo.

Ou não:
o sol voltará a marcar
este mesmo ponto do assoalho
onde esteve meu pé;
deste quarto
ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
uma nova cidade
surgirá de dentro desta
como a árvore da árvore.

Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.


(Ferreira Gullar)

Canção da Tua Chegada





Este fogo, esta fonte,
Esta noite de insônia:
Teus panos na cama
Teus passos na casa
Tua voz ao meu lado.
Meu bem que viaja
Num mundo tão outro
E está no meu peito
E alumia estas dores
Me povoa, me coroa
Me leva na sua escuna,
Me define, me redime
Me inventa e desinventa
Que corre comigo
Que comigo deita
Comigo viaja
Na casa no vento
No fogo da fonte
No quarto que é o mundo

(Lya Luft)

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Aurora


O poeta ia bêbedo no bonde.
O dia nascia atrás dos quintais.
As pensões alegres dormiam tristíssimas.
As casas também iam bêbedas.


Tudo era irreparável.
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu mas ficou calada),
que o mundo ia acabar às 7 e 45.
Últimos pensamentos! últimos telegramas!
José, que colocava pronomes,
Helena, que amava os homens,
Sebastião, que se arruinava,
Artur, que não dizia nada,
embarcam para a eternidade.


O poeta está bêbedo, mas
escuta um apelo na aurora:
Vamos todos dançar
entre o bonde e a árvore?

Entre o bonde e a árvore
dançai, meus irmãos!
Embora sem música
dançai, meus irmãos!

Os filhos estão nascendo
com tamanha espontaneidade.
Como é maravilhoso o amor
(o amor e outros produtos).

Dançai, meus irmãos!
A morte virá depois
como um sacramento.


(Carlos Drummond de Andrade)


sábado, 17 de maio de 2008

Garoto




Fui agraciado com o amor sem limites.
Mas, quando garoto,
a gente preocupada trabalhava
e eu escapava
para as margens do rio Rion
e vagava sem fazer nada.
Aborrecia-se minha mãe:
"Garoto danado!"
Meu pai me ameaçava com o cinturão.
Mas eu, com três rublos falsos,
jogava com os soldados sob os muros.
Sem o peso da camisa,
sem o peso das botas,
de costas ou de barriga no chão,
torrava-me ao sol de Kutaís
até sentir pontadas no coração.
O sol assombrava:
"Daquele tamaninho
e com um tal coração!
Vai partir-lhe a espinha!
Como, será que cabem
nesse tico de gente
o rio,
o coração,
eu
e cem quilômetros de montanhas?"

(Maiakovisk)

.


Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

.


A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

Para atravessar contigo o deserto do mundo


*

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino, meu segredo
Minha rápida noite, meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente,
Meu espelho, minha vida, minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

.


Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua


Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.



(Sophia de Mello Breyner Andresen)


Ar de noturno





Tenho muito medo
das folhas mortas,
medo dos prados
cheios de orvalho.
eu vou dormir;
se não me despertas,
deixarei a teu lado meu coração frio.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Pus em ti colares
com gemas de aurora.
Por que me abandonas
neste caminho ?
Se vais muito longe,
meu pássaro chora
e a verde vinha
não dará seu vinho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !

Nunca saberás,
esfinge de neve,
o muito que eu
haveria de te querer
essas madrugadas
quando chove
e no ramo seco
se desfaz o ninho.

O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !


(Maiakóvski)

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Invitation au voyage




Se cada um de vós, ó vos outros da televisão
-vós que viajais inertes
como defuntos num caixão-
se cada um de vós abrisse um livro de poemas...
faria uma verdadeira viagem...
Num livro de poemas se descobre de tudo, de tudo mesmo!

-Inclusive o amor e outras novidades.

(Mário Quintana)

Certas coisas


Certas coisas
não se podem deixar para depois.
Muitos poemas perdi
pensando: "depois escrevo",
"agora estou almoçando"
ou "consertando a porta".
Assim, adiei - perdi
o melhor de mim.

Certas coisas
não podem deixar para depois,
e nisto incluo; frutos no galho,
mudanças sociais,
certas coxas e bocas
e esta manhã que se esvai.

Certas coisas
não podem deixar para depois
o amor não se adia
como se adiam o imposto, a viagem, a utopia.
o desejo sabe o que quer,
detesta burocracia

Feito depois, o amor
é murcha lembrança
do que, não - sendo, seria

Certas coisas
não podem deixar para depois,
Como o amor e as pessoas,
não se pode recuperar
a poesia.

Epitáfio para o Séc. XX





1. Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.

2. Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.

3. Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
— nux-vômica.

4. Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.

5. Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.

6.Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.

7.Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.

8. Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.

9. Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passsado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
— já vai tarde.

(...)



In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Poema integrante da série Aprendizagem de História

I


O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

Manoel de Barros

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Sandra

é a alta e magra
donzela do quarto
de brincos
coberta por um longo
vestido

está sempre alta
em sapatos de salto
espírito
boletas
trago

Sandra se inclina
em sua cadeira
inclina-se em direção a
Glendale

aguardo que sua cabeça
bata na maçaneta
do guarda-roupa
enquanto ela tenta
acender
um novo cigarro num
outro já quase
consumido

aos 32 ela gosta de
jovens limpos
imaculados
com rostos semelhantes ao fundo
de pires recém-comprados

depois de se vangloriar
a não mais poder
acabou me trazendo seus prêmios
para que eu desse uma olhada:
garotos nulos, loiros e silenciosos
que
a) sentam
b) levantam
c) falam
ao seu comando

às vezes ela traz um
às vezes dois
às vezes três
para que eu os
veja

Sandra fica muito bem em
vestidos longos
Sandra pode partir provavelmente
o coração de um homem

espero que ela encontre
um.

Charles Bukowski

terça-feira, 13 de maio de 2008

Num Monumento à Aspirina


Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda a hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia...

João Cabral de Melo Neto

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Não Há Vagas


O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
...está fechado:
..."não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

............O poema, senhores,
............não fede
............nem cheira

Ferreira Gullar

.



Não somos bons em despedidas.
Passeamos lado a lado, os ombros tocando-se.
Já está começando a escurecer.
Estás pensativo, eu não digo nada.
Entramos na igreja para ver
alguém sendo batizado, enterrado, se casando;
depois vamos embora, sem olhar um para o outro.
Por que é que para nós nada dá certo?
Vamos sentar na neve pisoteada
do cemitério, suspirando de leve.
Com a ponta da bengala, traçarás palácios
em que viveremos felizes para sempre.

1917


(Anna Akhmátova )

.


Dentro de cada ser há um segredo
a que nem a paixão consegue acesso,
inda que os lábios fundam-se num beijo
e o coração de amor se despedace.
Os anos e a amizade incapazes
são de obter a ventura calcinante,
quando a alma liberta a estrangeira
à lenta lassidão voluptuosa.
Os que a procuram já são quase loucos.
Os que a alcançam, mata-os a tristeza...
Agora tu entenderás por que
meu coração não pulsa nas tuas mãos.


*

maio de 1915
Petersburgo


(Anna Akhmátova)

sábado, 10 de maio de 2008

.


_____de ramo
______________em ramo
meu pensamento
___________de rima
__________________em rima
__________________________erra

até uma
________que diz
_______________te amo


(LEMINSKI, 1983)

Sacro Lavoro


.:.


as mãos que escrevem isto
um dia iam ser de sacerdote
transformando o pão em vinho forte
na carne e sangue de cristo

hoje transformam palavras
num misto entre o óbvio e o nunca visto



(Paulo Leminski)

sexta-feira, 9 de maio de 2008

O Catador


Um homem catava pregos no chão.
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,
ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais - o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimônios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catar
pregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter.


Manoel de Barros
Ilustração: Jinnie Anne Pak

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Take p/ Bere


Foi tudo muito súbito
tudo muito susto
tudo assim como a resposta
fica quando chega a pergunta

esse meio assunto
que é quando a gente está longe
e continua junto


P. Leminski

.



..pessoas deviam poder evaporar
quando quisessem
..não deixar por aí
lembranças pedaços carcaças
..gotas de sangue caveiras esqueletos
e esses apertos no coração
..que não me deixam dormir
.
p. leminski

Acalanto


Deita, filho
E constrói teu sono
O medo já vem.
Fecha os olhos dos ouvidos
Faz escuro aos ruídos
Amortece o brilho desse som.
Pronto, a angústia gira muda
No longplei sem sulcos
Da noite sem insônia.
Dorme, filho,
Faz silêncio na Amazônia.

Millôr Fernandes

Haikai II


Olha,
Entre um pingo e outro
A chuva não molha.
.
Millôr Fernandes

Haikai I


Na poça da rua
O vira-lata
Lambe a Lua.
.
Millôr Fernandes

Auto-Retrato Falado



Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão, aves, pessoas humildes, árvores e rios. Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos.
Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me sinto meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que fui salvo.
Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado.
Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

Manoel de Barros

VII

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
-Gostar de fazer defeitos na frase é muito
saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da
vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores
surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
agramática.

Manoel de Barros

terça-feira, 6 de maio de 2008

Bilhete



Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...


Mário Quintana

segunda-feira, 5 de maio de 2008

.





Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.
.
Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.
.
Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?
.
Ricardo Reis
Fernando Pessoa

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Debaixo do Tamarindo





No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei bilhões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos.

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!

Augusto dos Anjos

Elegia


Que quer o vento?
A cada instante
Este lamento
Passa na porta
Dizendo: abre...

Vento que assusta
Nas horas frias
Na noite feia,
Vindo de longe,
Das ermas praias.

Andam de ronda
Nesse violento
Longo queixume,
As invisíveis
Bocas dos mortos.

Também um dia,
Estando eu morto,
Virei queixar-me
Na tua porta
Virei no vento
Mas não de inverno,
Nas horas frias
Das noites feias.

Virei no vento
Da primavera.
Em tua boca
Serei carícia,
Cheiro de flores
Que estão lá fora
Na noite quente.

Virei no vento...
Direi: acorda...


(Ribeiro Couto)

Anjo de outrora






O anjo de outrora, adormecido na minha alma,
Acordou esta noite e espiou nos meus olhos:
A lágrima caída ainda há pouco era dele.


Foi ele que a esqueceu à porta dos meus olhos,
Com o discreto pudor com que à porta da igreja
Deixamos cair a esmola na mão de um pobre.


(Ribeiro Couto)

No jardim em penumbra


Na penumbra em que jaz o jardim silencioso
A tarde triste vai morrendo... desfalece...
Sobre a pedra de um banco um vulto doloroso
Vem sentar-se, isolado, e como que se esquece.

Deve ser um secreto, um delicado gozo
Permanecer assim, na hora em que a noite desce,
Anônimo, na paz do jardim silencioso,
Numa imobilidade extática de prece.

Em lugar tão propício à doçura das almas
Ele vem meditar muitas vezes, sozinho,
No mesmo banco, sob a carícia das palmas.

E uma só vez o vi chorar, um choro brando...
Fiquei a ouvir... Caíra a noite, de mansinho...
Uma voz de menina ao longe ia cantando.



(Ribeiro Couto)

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro,
Fernando Pessoa

Prece


Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia -
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistaremos a Distância
— Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Fernando Pessoa