terça-feira, 3 de maio de 2011
Lirinha declamando "O guarda abilolado"
Como diz André ( e eu assino embaixo!)
Não era pro Cordel ter acabado... :(
O Guarda Abilolado
Doutor, eu tento razão,
De ser abilolado,
Venho do tempo marcado
Por seca e revolução.
Quando eu tinha ano e meio,
Escapei de um tiroteio,
De meu pai, na bolandeira.
Se meu pai ganhou, eu não sei
E também nunca perguntei,
Nem, sequer, por brincadeira.
Vim conhecer a cidade,
Quando votei pra prefeito
E, por sinal, ele foi eleito,
E, para minha felicidade,
Ele me deu um emprego:
Me entregou uma farda,
Um capote, um coturno,
Um capacete envernizado,
Um apito enferrujado,
Eu fui ser guarda noturno.
Passeava as noites inteiras,
Apitando na cidade,
Escola, igreja, cinema,
Mercado e maternidade.
Nas noites frias do inverno,
Eu usava um velho terno,
Umas meias de crochê,
Bebia quatro cachaças,
Dava três voltas na praça
E corria pro cabaré.
Lá existia de tudo:
Discursão, briga, lorota,
Um contava aventura,
Outro pagava uma meiota;
Quando um bêbado se zangava,
Eu ia lá e ajeitava.
O bêbado ficava manso,
Pagava pra mim uma bebida
Eu dava um apito e saía,
Na velha ginga de ganso.
Até que um dia o prefeito,
Fez uma reunião
E nela perguntou aos guardas:
- Querem aumento ou promoção?
Antes de fechar a boca,
Eu gritei com voz rouca:
- Quero promoção seu Zé!
Disse ele ta garantido,
Aprovado e promovido,
No maior posto que houver.
Me deu uma farda nova, florada,
Quem nem chita enfeitada,
De galão, estrela, medalha e fita,
Broche, botão e alfinete;
Trocou meu velho cacetete
Por um novo profissional,
E me disse: de hoje em diante,
Você é comandante,
De Guarda Municipal.
Pois três meses depois,
Veio a guerra mundial
E, nesse tempo, uma irmã minha
Tava morando em Natal.
Eu fui visitá-la;
Botei a farda na mala,
Passei o cargo a Raimundo
Que era quase um irmão.
Peguei o trem na estação,
E me intupigaitei no mundo.
Que lugar longe da gota.
Quase o trem não chegava mais;
Tinha hora que pensava
Que ele tava andando pra trás.
Entre solavancos e berros,
O velho embuá de ferro,
Viajou a noite inteira,
E de manhã cedo, chegou
Deu um apito e parou
Na estação da Ribeira.
Desembarquei e fiquei
Perdido na multidão.
Quando eu puxava uma conversa
Ninguém me dava atenção.
Quando mais bom dia dava,
Mais o povo se abusava,
Talvez me achando chato.
Era um povo diferente,
Da qualidade da gente,
Das cidadinhas do mato.
Perguntei a mais de mil,
Se eles davam notícia
De Carmelita de Sousa,
Uma cabocla mestiça,
Mulher do guarda Pompeu,
Mais morena do que eu
E de cabelo meio ruim,
Que morava na Ari Parreira,
Que fica perto da feira
No bairro do Alecrim.
Depois de tanta pergunta,
Depois de ouvir tanto não,
Me apareceu carmelita,
No pátio da Estação,
Toda cheia de finesses,
Puxando nos Rs e Ss
Que nem mulher de doutor,
Nem parecia a matuta,
Que lavrou a terra bruta,
No Sertão do interior.
Mesmo assim me recebeu,
Na sua casa modesta,
Os primeiros cinco dias,
Para nós foram de festa.
Quando o sexto dia veio,
Resolvi dar um passeio.
Mandei engomar a farda,
Me banhei, tirei o grude,
Me preparei como pude,
Para ter um dia de glória.
Passei o resto da tarde,
Sentado num tamborete,
Pregando estrelas, galões,
Broche, alfinete, botões,
Comprei mais uns acessórios,
Enfeitei o suspensório,
Feito de sola curtida.
De manhã cedo me vesti,
Tomei café e sai,
Dando risada da vida.
Na praça Gentil Ferreira,
Onde tinha um mercado,
Eu parei para tomar fôlego,
Quando passava um soldado
E fez continência para mim.
Eu fiquei pensando assim:
Que danado ele viu neu,
Na certa ta me confundindo,
Ou me achando parecido,
Com algum colega seu.
E haja passar soldado,
Fazendo assim com a mão.
Daqui a pouco era sargento,
Coronel, capitão, cabo,
Tenente, major
E todo o estado maior,
Dos quartéis da redondeza
Cumprimentavam-me ali
Até hoje nunca vi
Tamanha delicadeza.
Desfilaram tanques de guerra,
Aviões em vôo rasantes,
Sirenes tocaram mais fortes,
Canhões dispararam distantes.
Um praça do Coronel,
Puxou do bolso um papel,
Onde tinha um letreiro
Que dizia: - Nossa terra
Tem um espião de guerra,
Que chegou do estrangeiro.
Não quis falar com ninguém,
Não pergunta e nem responde,
Ninguém sabe de onde vem,
Ninguém sabe onde se esconde.
A sua farda é de cor de ameixa,
A impressão que nos deixa,
É que é um grande guerreiro,
Filho de outra nação,
Ou um perigoso espião,
Das guerras do estrangeiro.
Vamos levá-lo ao quartel,
Para uma averiguação,
Pois precisamos saber,
De onde veio esse espião.
Em seguida me levaram
Ao quartel e me entregaram
Ao Comandante Geral
Que, quando me viu fardado,
Perguntou meio assustado:
- Que ta fazendo em Natal?
Donde diabo é essa farda?
Faça o favor de informar,
E como se chama a nação
Que usa uniforme diferente?
E quem lhe deu tanta patente?
A troco não sei de que.
E porque Vossa Excelência
Não responde as continências,
Afinal, quem é você?
Coronel, eu sou Zé Carrapeta,
Sou filho do Cariri.
Não sei fazer continência,
Pra gente que nunca vi.
Porém, nunca fui intruso
E, acredite, eu só uso
Esse quepe de biriba,
Essa farda e esse coturno,
Porque sou Guarda Noturno,
Em Sapé, na Paraíba.
CHICO PEDROSA
sexta-feira, 22 de outubro de 2010
Um cinturão
Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com urna corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal - e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.
Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé de turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente e me livrassem daquele perigo.
Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os ,sons duros morriam, desprovidos de significação.
Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.
Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.
O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.
Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.
Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.
A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disso. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal.
Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos - e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás dos caixões, livre do martírio.
Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que rogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.
Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.
Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me, num desespero.
O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.
Pareceu-me que a figura imponente minguava - e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.
Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.
Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.
(“Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”)
Graciliano Ramos
terça-feira, 12 de outubro de 2010
As mortes sucessivas
Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintas onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu, me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua.
Cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu eu nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
"Deixa, tá bom assim".
Quem me consolará dessa lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória"
(Adélia Prado)
sábado, 27 de março de 2010
As seis cordas
Federico Garcia Lorca
A guitarra
faz soluçar os sonhos.
O soluço das almas
perdidas
foge por sua boca
redonda.
E, assim como a tarântula,
tece uma grande estrela
para caçar suspiros
que bóiam no seu negro
abismo de madeira.
Federico Garcia Lorca
Poema V
Hilda Hilst
A Federico García Lorca
Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu
pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
que bebi na tua boca a fúria de umas águas
eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
porque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.
Ah! Se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.
E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória
e cantar de repente: “os arados van e vên
dende a Santiago a Belén”.
Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
a tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:
deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas se está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?
“El passado se pone
su coraza de hierro
y tapa sus oídos
con algodón del viento.
Nunca podrá arrancársele
un secreto.”
E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
azuis, braços e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
de infância, de plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.
O poema acima foi publicado no livro "Poemas aos homens de nosso tempo”, Ed. Globo, São Paulo - 2003, pág. 109.
sexta-feira, 26 de março de 2010
Desencontrários
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.
Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.
Paulo Leminski
quinta-feira, 25 de março de 2010
Esconderijo
Há um menino por baixo das coisas,
Por tão dentro assim que se diz âmago.
Ali, no mais distante e só do nosso ser,
Onde não acontecem palavras nem sol.
Ele vive de roer umas migalhas de vida,
Sob o regime vigilante do bom senso...
Às vezes joga verdades pela nossa boca,
Mas logo rejeitado retorna para sua cela.
Está sempre sozinho, ausente das horas,
Com destino de eterno breu e silêncio.
Lá não há escada que facilite sua fuga,
Nem verdades que clareiem o caminho.
Esse menino levaremos calado até o fim,
Para que vençam nossas meias-verdades,
E façam de nós homens que não fomos,
E sagrem mulheres que jamais existiram,
E que assim a estrada de viver siga planos,
E a sociedade não seja afetada pelo real.
Esse garoto e sua bandeira pequenina,
Assim guardado talvez seja o único jeito
De manter no caminho a raça humana;
Driblando verdades, maquiando desejos.
Que durma pois nosso menino em sigilo,
Deixado para um acaso qualquer adiante.
Hoje não, que viver ainda é de disfarces,
Um contrato assinado antes de nascermos:
Por um quase-caminho vai uma quase-vida;
Um seguir de regras sumariamente prontas.
É só viver do tamanho que morre o âmago,
E agendar para outra vez o que silencia.
Ricardo Fabião
Achei a imagem AQUI
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
Poema pouco original do medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Alexandre O'Neill
A meu favor
A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.
Alexandre O'Neill |
sábado, 3 de outubro de 2009
Ismália
Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...
(Alphonsus de Guimaraens)
Imagem da Ângela
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
Se eu fosse um padre
Leitura
As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha
de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas
fora do seu tempo desejadas.
Ao longo do muro eram talhas de barro.
Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo
que lá fora o mundo havia parado de calor.
Depois encontrei meu pai, que me fez festa
e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria,
os lábios de novo e a cara circulados de sangue,
caçava o que fazer pra gastar sua alegria:
onde está meu formão, minha vara de pescar,
cadê minha binga, meu vidro de café?
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.”
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
O amor por entre o verde
Não é sem frequência que, à tarde, chegando à janela, eu vejo um casalzinho de brotos que vem namorar sobre a pequenina ponte de balaustrada branca que há no parque. Ela é uma menina de uns treze anos, o corpo elástico metido num blue jeans e um suéter folgadão, os cabelos puxados para trás num rabinho-de- cavalo que está sempre a balançar para todos os lados; ele, um garoto de, no máximo, dezesseis, esguio, com pastas de cabelo a lhe tombar sobre a testa e um ar de quem descobriu a fórmula da vida.
Uma coisa eu lhes asseguro: eles são lindos e ficam montados um em frente ao outro, no corrimão da colunata, os joelhos a se tocarem, os rostos a se buscarem a todo momento para pequenos segredos, pequenos carinhos, pequenos beijos. São, na sua extrema juventude, a coisa mais antiga que há no parque, incluindo velhas árvores que por ali espapaçam sua verde sombra; e as momices e brincadeiras que se fazem daria para escrever todo um tratado sobre a arqueologia do amor, pois têm uma tal ancestralidade que nunca se há de saber a quantos milênios remontam.
Eu os observo por um minuto apenas para não perturbar-lhes os jogos de mão e misteriosos brinquedos mímicos com que se entretêm, pois suspeito de que sabem de tudo o que se passa à sua volta. Às vezes, para descansar da posição, encaixam-se os pescoços e repousam os rostos um sobre o ombro do outro, como dois cavalinhos carinhosos, e eu vejo então os olhos da menina percorrerem vagarosamente as coisas em torno, numa aceitação dos homens, das coisas e da natureza, enquanto os do rapaz mantêm-se fixos, como a prescrutar desígnios. Depois voltam à posição inicial e se olham nos olhos, e ela afasta com a mão os cabelos de sobre a fronte do namorado, para vê-lo melhor e sente-se que eles se amam e dão suspiros de cortar o coração. De repente o menino parte para uma brutalidade qualquer, torce-lhe o pulso até ela dizer-lhe o que ele quer ouvir, e ela agarra-o pelos cabelos, e termina tudo, quando nao há passantes, num longo e meticuloso beijo.
- Que será – pergunto-me eu em vão – dessas duas crianças que tão cedo começam a praticar os ritos do amor? Prosseguirão se amando, ou de súbito, na sua jovem incontinência, procurarão o contato de outras bocas, de outras mãos, de outros ombros? Quem sabe se amanhã quando eu chegar à janela, não verei um rapazinho moreno em lugar do louro ou uma menina com a cabeleira solta em lugar dessa com cabelos presos?
– E se prosseguirem se amando – pergunto-me novamente em vão – será que um dia se casarão e serão felizes? Quando, satisfeita a sua jovem sexualidade, se olharem nos olhos, será que correrão um para o outro e se darão um grande abraço de ternura? Ou será que se desviarão o olhar, para pensar cada um consigo mesmo que ele não era exatamente aquilo que ela pensava e ela era menos bonita ou inteligente do que ele a tinha imaginado?
É um tal milagre encontrar, nesse infinito labirinto de desenganos amorosos, o ser verdadeiramente amado… Esqueço o casalzinho no parque para perder-me por um momento na observação triste, mas fria, desse estranho baile de desencontros, em que frequentemente aquela que deveria ser daquele acaba por bailar com outro porque o esperado nunca chega; e este, no entanto, passou por ela sem que ela o soubesse, suas mãos sem querer se tocaram, eles olharam-se nos olhos por um instante e nâo se reconheceram.
E é então que esqueço tudo e vou olhar nos olhos de minha bem-amada como se nunca a tivesse visto antes. É ela, Deus do céu, é ela! Como a encontrei, não sei. Como chegou até aqui, não vi. Mas é ela, eu sei que é ela porque há um rastro de luz quando ela passa; e quando ela me abre os braços eu me crucifico neles banhado em lágrimas de ternura; e sei que mataria friamente quem quer que lhe causasse dano; e gostaríamos que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos, mirando muito além das estrelas.
(Vinícius de Moraes)
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