sexta-feira, 28 de novembro de 2008
Apagar-me
.
.
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apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme
p. leminski
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
Casamento
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quinta-feira, 2 de outubro de 2008
Ausência
Apenas se te deixar
venhas até mim,
cristalina ou temerosa
inquieta, ferida por mim mesmo
ou satisfeita de amor, como quando teus olhos
se fecham sobre o dom da vida
que sem parar, te entrego
amor meu,
nos encontramos
sedentos e nos bebemos
toda água e sangue.
Nos encontramos
com fome
e nos mordemos
como o fogo morde
deixando-nos feridas;
Porém, espera-me
guarda-me a tua doçura.
Eu te darei também uma rosa.
(Pablo Neruda)
Por ti
Por ti junto aos jardins cheios de flores novas me doem
os perfumes da primavera.
Esqueci o teu rosto, não me lembro de tuas mãos,
como beijavam os teus lábios?
Por ti amo as brancas estátuas adormecidas nos parques,
as brancas estátuas que não têm voz nem olhar.
Esqueci tua voz, tua voz alegre, me esqueci dos teus olhos.
Como uma flor a seu perfume, estou atado à tua lembrança imprecisa.
Estou perto da dor como uma ferida, se me tocas me farás um dano irremediável.
Não me lembro mais do teu amor e no entanto te adivinho atrás de todas as janelas.
Por ti me doem os pesados perfumes do estio: por ti volto a espreitar
os signos que precipitam os desejos, as estrelas em fuga, os objetos que caem.
Pablo Neruda
domingo, 28 de setembro de 2008
Homem Comum

"Sou um homem comum
de carne e de memória
de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
pânica
feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
cessar.
Sou como você
feito de coisas lembradas
e esquecidas
rostos e
mãos, o quarda-sol vermelho ao meio-dia
em Pastos-Bons
defuntas alegrias flores passarinhos
facho de tarde luminosa
nomes que já nem sei
bandejas bandeiras bananeiras
tudo
misturado
essa lenha perfumada
que se acende
e me faz caminhar
Sou um homem comum
brasileiro, maior, casado, reservista,
e não vejo na vida, amigo,
nenhum sentido, senão
lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
Quero, por isso, falar com você,
de homem para homem,
apoiar-me em você
oferecer-lhe o meu braço
que o tempo é pouco
e o latifúndio está aí, matando.
Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
Homem comum, igual
a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
A sombra do latifúndio
mancha a paisagem
turva as águas do mar
e a infância nos volta
à boca, amarga,
suja de lama e de fome.
Mas somos muitos milhões de homens
comuns
e podemos formar uma muralha
com nossos corpos de sonho e margaridas".
(Brasília, 1963 - Ferreira Gullar)
terça-feira, 16 de setembro de 2008
Soneto LXVI

Por que meu verso é sempre tão carente
De mutações e variação de temas?
Por que não olho as coisas do presente
Atrás de outras receitas e sistemas?
Por que só escrevo essa monotonia
Tão incapaz de produzir inventos
Que cada verso quase denuncia
Meu nome e seu lugar de nascimento?
Pois saiba, amor, só escrevo a seu respeito
E sobre o amor, são meus únicos temas.
E assim vou refazendo o que foi feito,
Reinventando as palavras do poema.
Como o sol, novo e velho a cada dia,
O meu amor rediz o que dizia.
(William Shakespeare)
sábado, 13 de setembro de 2008
Soneto 17 ~

Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.
Às vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na terna mutação da natureza.
Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:
Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver.
(William Shakespeare )
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
Retrato imperfeito
Apelo ao Quixote

Não deixes que a tua
armadura enferruje.
Principalmente no peito,
que é perto do coração.
Segura a espada,
larga o escudo,
pois medo não é proteção.
Permite que o sol bata na poeira
e o vento leve o sujo
do aço que te cobre.
Na loucura, só na loucura,
estarás liberto. O teu mito
é sol, liberdade e céu aberto.
(Maximiano Campos)
O filho
segunda-feira, 1 de setembro de 2008
Melancolia

inclui todos nós.
eu, eu escrevo em lençóis sujos
enquanto olho para paredes azuis
e nada.
eu já me acostumei tanto com a melancolia
que
eu a recebo como uma velha
amiga.
eu terei agora15 minutos de aflição
pela ruiva perdida,
eu digo aos deuses.
eu faço isso e me sinto bastante mal
bastante triste
então eu levanto
LIMPO
apesar de que nada
está resolvido.
isso é o que eu ganho por chutar
a religião na bunda.
eu deveria ter chutado a ruiva
na bunda
onde o cérebro e o pão e
a manteiga dela
estão...
mas, não, eu me senti triste
por tudo:
a ruiva perdida foi apenas outro
rompimento em uma vida
de perdas...
eu ouço a bateria no rádio agora
e sorrio.
há alguma coisa errada comigo
alem
da melancolia.
Charles Bukowski
sexta-feira, 29 de agosto de 2008
cão
cupons

cigarros umedecidos por cerveja
da noite passada
você acende um
se engasga
abre a porta em busca de ar
e junto à entrada
está um pardal morto
sua cabeça e seu peito
arrancados.
pendurado à maçaneta
há um anúncio da All American
Burger
que consiste de alguns cupons
que
dizem
que na compra
de um hambúrguer
de 12 de fev. a 15 de fev.
você ganha de graça
um pacote de batatas
fritas médio e um
copo pequeno de coca-cola.
pego o anuncio
embrulho o pardal com ele
levo até a lata de lixo
e despejo lá dentro.
veja:
renunciando a batatas fritas e coca
para ajudar a manter
minha cidade
limpa.
Charles Bukowski
quinta-feira, 28 de agosto de 2008
José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
(Carlos Drummond de Andrade)
Paisagem do Interior

menino chorando nu
rolo de fumo e beiju
colchão de palha listrado
um par de bêbo agarrado
preto véio rezador
jumento jipe e trator
lençol voando estendido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.
Três moleque fedorento
morcegando um caminhão
chapéu de couro e gibão
bodega com surtimento
poeira no pé de vento
tabulêro de cocada
banguela dando risada
das prosa do cantador
buchuda sentindo dor
com o filho quase parido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.
Bêbo lascando a canela
escorregando na fruta
num batente, uma matuta
areando uma panela
cachorro numa cadela
se livrando das pedrada
ciscador corda e enxada
na mão do agricultor
no jardim, um beija-flor
num pé de planta florido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.
Mastruz e erva-cidreira
debaixo dum jatobá
menino querendo olhar
as calça da lavadeira
um chiado de porteira
um fole de oito baixo
pitomba boa no cacho
um canário cantador
caminhão de eleitor
com os voto tudo vendido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.
Um motorista cangueiro
um jipe chêi de batata
um balai de alpercata
porca gorda no chiqueiro
um camelô trambiqueiro
avelós e lagartixa
bode véio de barbicha
bisaco de caçador
um vaqueiro aboiador
bodegueiro adormecido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.
Meninas na cirandinha
um pula corda e um toca
varredeira na fofoca
uma saca de farinha
cacarejo de galinha
novena no mês de maio
vira-lata e papagaio
carroça de amolador
fachada de toda cor
um bruguelim desnutrido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.
Uma jumenta viçando
jumento correndo atrás
um candeeiro de gás
véi na cadeira bufando
radio de pilha tocando
um choriço, um manguzá
um galho de trapiá
carregado de fulô
fogareiro abanador
um matador destemido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.
Um soldador de panela
debaixo da gameleira
sovaqueira, balinheira
uma maleta amarela
rapariga na janela
casa de taipa e latada
nuvilha dando mijada
na calçada do doutor
toalha no aquarador
um terreiro bem varrido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.
Um forró de pé de serra
fogueira milho e balão
um tum-tum-tum de pilão
um cabritinho que berra
uma manteiga da terra
zoada no mêi da feira
facada na gafieira
matuto respeitador
padre, prefeito e doutor
os home mais entendido
isso é cagado e cuspido
paisagem de interior.
Jessier Quirino
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferivel
do que homem que iniciei
na medida do impossivel
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim
(Torquato Neto)
Balé
Impressionista
terça-feira, 26 de agosto de 2008
Desejo
Louco?! Eu?!

Roberto Carlos!
Louco era se eu quisesse, por fina força,
engordar uma bicicleta!
Louco é o açougueiro que,
na frente de todo mundo, corta os pulsos
do filé!
Louco é quem sofre de fratura no fígado
e não esbarra a cachaça!
Louco é quem invade o morro
no risco de levar uma peixeirada
de alta-costura!
Louco era se eu quisesse invadir o Planalto
com um jumento de Tróia
e gritando: Incompetência ou Morte!
Jessier Quirino
terça-feira, 19 de agosto de 2008
Primeiro prenúncio de trovoada de depois

Primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã.
As primeiras nuvens, brancas, pairam baixas no céu mortiço
Da trovoada de depois de amanhã?
Tenho a certeza, mas a certeza é mentira.
Ter certeza é não estar vendo.
Depois de amanhã não há.
O que há é isto:
Um céu azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte,
Com um retoque de sujo em baixo como se viesse negro depois,
Isto é o que hoje é,
E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo.
Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?
Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovoada de depois de amanhã
Será outra trovoada do que seria se eu não tivesse morrido.
Bem sei que a trovoada não cai da minha vista,
Mas se eu não estiver no mundo,
O mundo será diferente -
Haverá eu a menos -
E a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada."
Alberto Caeiro
segunda-feira, 18 de agosto de 2008
Epílogo

Com o coração feliz subo para a montanha
De onde posso contemplar a cidade inteira,
Hospital, lupanar, purgatório, inferno, prisão,
Onde toda a enormidade floresce como uma flor
Sabes bem, ó Satã, dono de minha angústia,
Que eu não fui lá para derramar meu pranto;
Mas como um velho libidinoso de uma velha amante,
Quero inebriar-me com a enorme prostituta
Cujo encanto infernal me rejuvenesce sempre.
Que durmas ainda nos lençóis da manhã,
Pesada, obscura, resfriada, ou que te exibas
Entre os véus da noite borbados a ouro fino;
Eu te amo, ó capital infame! Cortesãs
E bandidos, aos quais frequentemente ofereces prazeres
Incompreendidos pelos vulgares profanos.
Charles Baudelaire
"Quero apenas cinco coisas
domingo, 17 de agosto de 2008
Iceberg
Uma poesia ártica,
claro, é isso que eu desejo.
Uma prática pálida,
três versos de gelo.
Uma frase-superfície
onde vida-frase alguma
não seja mais possível.
Frase, não, Nenhuma.
Uma lira nula,
reduzida ao puro mínimo,
um piscar do espírito,
a única coisa única.
Mas falo. E, ao falar, provoco
nuvens de equívocos
(ou enxame de monólogos?)
Sim, inverno, estamos vivos.
(Paulo Leminski)
Segundo consta
Aviso aos náufragos

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialétos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?
(Paulo Leminski)
Embriagai-vos

É necessário estar sempre bêbado. Tudo se resume a isso, eis o único problema. Para não sentir o fardo horrível do tempo, que abate e faz pender a terra, é preciso que nos embriaguemos sem cessar. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achar melhor. Contanto que nos embriaguemos.
E se, algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do nosso quarto, você despertar com a embriaguez já atenuada ou desaparecida , pergunta ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder.
- É a hora da embriaguez! Para não ser martirizado pelo tempo, embriagai-te. Embriaga-te sem tréguas.
De vinho, de poesia, ou de virtude, como achar melhor"
Charles Baudelaire
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
.
Nel mezzo del camim...

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E alma de sonhos povoada eu tinha...
E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.
Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.
E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.
(Olavo Bilac)
domingo, 27 de julho de 2008
Madrigal Melancólico

O que eu adoro em ti
Não é a tua beleza
A beleza é em nós que existe
A beleza é um conceito
E a beleza é triste
Não é triste em si
Mas pelo que há nela
De fragilidade e incerteza
O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência
Não é o teu espírito sutil
Tão ágil e tão luminoso
Ave solta no céu matinal da montanha
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
O que eu adoro em ti
Não é a tua graça musical
Sucessiva e renovada a cada momento
Graça aérea como teu próprio momento
Graça que perturba e que satisfaz
O que eu adoro em ti
Não é a mãe que já perdi
E nem meu pai
O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto matinal
Em teu flanco aberto como uma ferida
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que adoro em ti lastima-me e consola-me:
O que eu adoro em ti é a vida.
Manuel Bandeira
quinta-feira, 24 de julho de 2008
O menino doente

O menino dorme.
Para que o menino
Durma sossegado,
Sentada a seu lado
A mãezinha canta:
- "Dodói, vai-te embora!
"Deixa o meu filhinho.
"Dorme... dorme... meu..."
Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:
- "Dorme, meu amor.
"Dorme, meu benzinho..."
E o menino dorme.
Manuel Bandeira
quarta-feira, 23 de julho de 2008
Olinda em Paris - Passeando com Cícero Dias

Na ilha antida de São Luís,
que abre em dois o Sena de Paris,
existia um Hotel Olinda
(existia, não sei se ainda).
Cícero, ciceroneando
todo amigo pernambucano,
diante do hotel recomendava:
"Vem da Olinda nossa, essa placa,
mas ao dono não pergunte onde
ele descobriu esse nome.
O dono próprio me contou
que com o nome o hotel comprou
e o mantém sem querer saber
se é um quando, um donde ou um quê.
Mas que se alguém pergunta ainda
por que o hotel se chama Olinda,
num só dia o fará mudar
para outro que nada dirá:
para outro insípido e vazio
exemplo: para Hotel do Rio.
João Cabral de Melo Neto
O Luto no Sertão

Pelo Sertão não se tem como
não se viver sempre enlutado;
lá o luto não é de vestir,
é de nascer com, luto nato.
Sobe de dentro, tinge a pele
de um fosco fulo: é quase raça;
luto levado toda a vida
e que a vida empoeira e desgasta.
E mesmo o urubu que ali exerce,
negro tão puro noutras praças,
Quando no Sertão usa a batina
negra-fouveiro, pardavasca.
João Cabral de Melo Neto
.
Balada de Santa Maria Egipcíaca

Santa Maria Egipcíaca seguia
Em perigrinação à terra do Senhor.
Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir.
Santa Maria Egipcíaca chegou
À beira de um grande rio.
Era tão longe a outra margem!
E estava junto à ribanceira,
Num barco,
Um homem de olhar duro.
Santa Maria Egipcíaca rogou:
- Levai-me à outra parte do rio.
Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.
O homem duro fitou-a sem dó.
Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir.
- Não tenho dinheiro. O senhor te abençoe.
Leva-me à outra parte.
O homem duro escarneceu: - Não tens dinheiro,
Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me teu corpo, e vou levar-te.
E fez um gesto. E a santa sorriu,
Na graça divina, ao gesto que ele fez.
Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
A santidade da sua nudez.
Manuel Bandeira
quinta-feira, 3 de julho de 2008
Horácio
Quando nós, de meninos,
vivemos a doença
de criar passarinhos,
e as férias acabadas
o horrível outra-vez
do colégio nos pôs
na rotina de rês,
deixamos com Horácio
um dinheiro menino
que pudesse manter
em vida os passarinhos.
Poucos dias depois
as gaiolas sem língua
eram tumbas aéreas
de morte nordestina.
Horácio não comprara
alpiste; e tocar na água
gratuita, para os cochos,
certo lhe repugnava.
Gastou o que do alpiste
com o alpiste-cachaça.
alma do passarinho
que em suas veias cantava.
João Cabral de Melo Neto
terça-feira, 1 de julho de 2008
Tabacaria

*
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
(Álvaro de Campos)
quinta-feira, 19 de junho de 2008
9 Poemetos

I
É quando a vida vase
É quando como quase.
Ou não, quem sabe.
Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
III
O paulo leminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover
em nosso piquenique
IV
Manchete
Chutes de poeta
Não levam perigo à meta
V
apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme
VI
uma carta uma brasa através
por dentro do texto
nuvem cheia da minha chuva
cruza o deserto por mim
a montanha caminha
o mar entre os dois
uma sílaba um soluço
um sim um não um ai
sinais dizendo nós
quando não estamos mais
VII
Pariso
Novayorquizo
moscoviteio
sem sair do bar
só não levanto e vou embora
porque tem países
que eu nem chego a madagascar
VIII
nunca quis ser freguês distinto
pedindo isso e aquilo
vinho tinto
vinho tinto
obrigado
hasta la vista
queria entrar
com os dois pés
no peito dos porteiros
dizendo pro espelho
- cala a boca
e pro relógio
abaixe os ponteiros
IX
nem toda hora
é obra
nem toda obra
é prima
algumas são mães
outras irmãs
algumas
clima
(Paulo Leminski)
Paulo Leminski

desta vez não vai ter neve
como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando
nem casacos nem cossacos
como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando
não vai mais ter multidões gritando
como em petrogrado aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando
nunca mais vai ter um dia
como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormindo
(P. Leminski)
Desencontrários

Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.
Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
fazer poesias, eu sinto, apenas isso
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.
(Paulo Leminski)
terça-feira, 17 de junho de 2008
Adolescente

A juventude de mil ocupações.
Estudamos gramática até ficar zonzos.
A mim
me expulsaram do quinto ano
e fui entupir os cárceres de Moscou.
Em nosso pequeno mundo caseiro
brotam pelos divãs
poetas de melenas fartas.
Que esperar desses líricos bichanos?
Eu, no entanto,
aprendi a amar no cárcere.
Que vale comparado com isto
a tristeza dos bosques de Boulogne?
Que valem comparados com isto
suspirosante a paisagem do mar?
Eu, pois,
me enamorei da janelinha da cela 103
da "oficina de pompas fúnebres".
Há gente que vê o sol todos os dias
e se enche de presunção.
"Não valem muito esses raiozinhos"
dizem.
Eu, então,
por um raiozinho de sol amarelo
dançando em minha parede
teria dado todo um mundo
(Maiakóvski )
Ser Grande
Saudade
segunda-feira, 16 de junho de 2008
Dos Milagres
domingo, 8 de junho de 2008
Eu luminoso não sou.

Eu luminoso não sou.
Nem sei que haja
Um poço mais remoto,
e habitado
De cegas criaturas,
de histórias e assombros.
Se, no fundo poço,
que é o mundo
Secreto e intratável
das águas interiores,
Uma roda de céu
ondulando se alarga,
Digamos que é o mar:
como o rápido canto
Ou apenas o eco,
desenha no vazio irrespirável
O movimento de asas.
O musgo é um silêncio,
E as cobras-d'água
dobram rugas no céu,
Enquanto, devagar,
as aves se recolhem.
(José Saramago)
Balada do amor através das idades

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar meu irmão.
Matei, brigamos, morremos.
Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catatumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.
Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria do meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal da cruz
e rasgou o peito a punhal…
Me suicidei também.
Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira…
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.
Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.
Carlos Drummond de Andrade
sábado, 7 de junho de 2008
Ah... Se Sesse

E se eu me arreliasse
Somos Todos Poetas

Murilo Mendes
Desencanto

Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
E nestes versos de angústia rouca
- Eu faço versos como quem morre.
.

Manoel de Barros
Ausência

Carlos Drummond de Andrade
Mãos Dadas

Carlos Drummond de Andrade