
Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.
há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.
Pablo Neruda (Últimos Poemas)
"...Se dirá que as estrelas gargalham, E no entanto o universo está surdo. " (Boris Pasternak)
O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!
(Mario Quintana)
Os poetas não são azuis nem nada, como pensam alguns supersticiosos, nem sujeitos a ataques súbitos de levitação. O de que eles mais gostam é estar em silêncio - um silêncio que subjaz a quaisquer escapes motorísticos e declamatórios. Um silêncio... Este impoluível silêncio em que escrevo e em que tu me lês.
(Mario Quintana - A vaca e o hipogrifo)
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Cecília Meireles
(...)
É sempre rápido o tempo da felicidade. O Tempo é um ser difícil. Quando queremos que ele se prolongue, seja demorado e lento, ele foge às pressas, nem se sente o correr das horas.
Quando queremos que ele voe mais depressa que o pensamento, porque sofremos, porque vivemos um tempo mau, ele escoa moroso, longo é o desfilar das horas.
Curto foi o tempo do Verão para o Gato e a Andorinha. Encheram-no com passeios vagabundos, com longas conversas à sombra das árvores, com sorrisos, com palavras murmuradas, com olhares tímidos, porém expressivos, com alguns arrufos também...
Não sei se arrufos será a palavra precisa. Explicarei: por vezes a Andorinha encontrava o Gato abatido, de bigodes murchos e olhos ainda mais pardos. A causa não variava: a Andorinha saíra com o Rouxinol, com ele conversara ou tivera aula de canto — o Rouxinol era o professor. A Andorinha não compreendia a atitude do Gato Malhado, aquelas súbitas tristezas que se prolongavam em silêncios difíceis. Entre ela e o Gato jamais havia sido trocada qualquer palavra de amor, e, por outro lado, a Andorinha, segundo disse, considerava o Rouxinol um irmão.
Um dia — dia em que a aula de canto se prolongara além do tempo costumeiro —, quando os bigodes do Gato estavam tão murchos que tocavam o solo, ela lhe pediu explicação daquela tristeza. O Gato Malhado respondeu:
— Se eu não fosse um gato, te pediria para casares comigo...
A Andorinha ficou calada, num silêncio de noite profunda. Surpresa? – não creio, ela já adivinhara o que se passava no coração do Gato. Zanga? – não creio tampouco, aquelas palavras foram gratas ao seu coração. Mas tinha medo. Ele era um gato, e os gatos são inimigos irreconciliáveis das andorinhas.
Voou rente sobre o Gato Malhado, tocou-o de leve com a asa esquerda, ele podia ouvir as batidas do pequeno coração da Andorinha Sinhá. Ela ganhou altura, de longe ainda o olhou, era o último dia de Verão.
Vês?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
(Augusto dos anjos)