terça-feira, 12 de outubro de 2010

As mortes sucessivas


Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintas onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu, me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua.
Cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu eu nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
"Deixa, tá bom assim".
Quem me consolará dessa lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória"


(Adélia Prado)

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