segunda-feira, 14 de abril de 2008

Confissões


esperando pela morte
como um gato
que vai pular
na cama

sinto muita pena de
minha mulher
ela vai ver este
corpo rijo e
branco

vai sacudi-lo e
talvez
sacudi-lo de novo:

“Henry!”

e Henry não vai
responder.

não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.

no entanto,
eu quero que ela
saiba
que dormir
todas as noites
a seu lado

e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas

e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora
ser ditas:

eu
te amo.
.
Charles Bukowski

Testamento

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

Manuel Bandeira

sábado, 12 de abril de 2008

Razão de Ser



Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

p. leminski

nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez



Paulo Leminski

.


Abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri:
Antigamente eu era eterno.

Paulo Leminski

Canção




Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles

Aninha e suas pedras






Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina (Outubro, 1981)

Concerto para Corpo e Alma





Compreendi, então,
que a vida não é uma sonata que,
para realizar a sua beleza,

tem que ser tocada até o fim.

Dei-me conta, ao contrário,
de que a vida é um álbum de minissonatas.

Cada momento de beleza vivido e amado,
por efêmero que seja,
é uma experiência completa
que está destinada à eternidade.

Um único momento de beleza
e amor justifica a vida inteira."



(Rubem Alves)

Epigramas



Epigrama no. 1


Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis
uma sonora ou silenciosa canção:

flor do espírito, desinteressada ou efêmera.

Por ela, os homens te conhecerão.
Por ela, os tempos versáteis saberão

que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,

quando por ele andou teu coração.




Epigrama no. 2


És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa:
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
Porque um dia se vê que as horas todas passam,

e um tempo despovoado e profundo, persiste.


Epigrama no. 3


Mutilados jardins e primaveras abolidas

abriram seus miraculosos ramos

no cristal em que pousa minha mão.
(Prodigioso perfume!)

Recompuseram-se tempos, formas, cores, vidas...

Ah, mundo vegetal, nós, humanos, choramos,

só da incerteza da ressurreição.





Epigrama no. 4


O choro vem perto dos olhos

para que a dor transborde e caia.


O choro vem quase chorando

como a onda que chora na praia.


Descem dos céus ordens augustas

e o mar chama a onda para o centro.


O choro foge sem vestígios,

mas levando náufragos dentro




Epigrama no. 5


Gosto de gota d'água que se equilibra

na folha rasa, tremendo ao vento.


Todo o universo, no oceano do ar,
secreto vibra:
e ela resiste, no isolamento.

Seu cristal simples reprime a forma no instante incerto
pronto a cair, pronto a ficar, límpido e exato.

E a folha é um pequeno deserto,
para a imensidade do ato.



Epigrama no. 6


Nestas pedras caiu, certa noite, uma lágrima.

O vento que a secou deve estar voando em outras países,

o luar que a estremeceu em teus olhos brancos de cegueira-
esteve sobre ela, mas não viu seu esplendor.


Só, com a morte do tempo,
os pensamentos que a choraram verão,
junto ao universo, como foram infelizes,
que uma lágrima foi, naquela noite, a vida inteira,
tudo quanto era dar, - a tudo que era opor.



Epigrama no. 7


A tua raça de aventura

Quis ter a terra, o céu, o mar...
Na minha, há uma delícia obscura
em não querer, em não ganhar...

A tua raça quer partir, guerrear,
sofrer, vencer, voltar.

A minha, não quer ir nem vir.

A minha raça quer passar.



(Cecília Meireles)

.


misto de tédio e mistério
meio dia / meio termo
incerto ver neste inverno
medo que a noite tem
que o dia acorde mais cedo
e seja eterno o amanhecer.
.
p. leminski

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Rio e/ou Poço



Quando tu, na vertical,
te ergues, de pé em ti mesma,
é possível descrever-te
com a água da correnteza;

tens a alegria infantil,
popular, passarinhadeira,
de um riacho horizontal
(e embora de pé estejas).

Mas quando na horizontal,
em certas horas, te deixas,
que é quando, por fora, mais
as águas correntes lembras,

mas quando à tua extensão,
como se rio, te entregas,
quando te deitas em rio
que se deita sobre a terra,

então, se é da água corrente,
por longa, tua aparência,
somente a água de um poço
expressa tua natureza;

só uma água vertical
pode, de alguma maneira,
ser a imagem do que és
quando horizontal e queda.

Só uma água vertical,
água parada em si mesma,
água vertical de poço,
água toda em profundeza,

água em si mesma, parada,
e que ao parar mais se adensa,
água densa água, como
de alma tua alma está densa.

João Cabral de Melo Neto

A Palavra Seda


A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.

E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.

É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.

E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,

nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.

Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,

há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,

de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza,
que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.
.
João Cabral de Melo Neto

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Cantiga para não morrer


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
.
Ferreira Gullar

terça-feira, 8 de abril de 2008

Logo no mês de Janeiro


Logo no mês de Janeiro
apertei a tua mão
Vou passar o ano inteiro
nessa mesma posição.

Se queres, te prendo.
Se queres, te solto...
E se queres me arrependo,
e se queres ainda volto...

(Não rias,
porque é verdade,
tu parecias
a felicidade.)


(Cecília Meireles)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Simultaneidade


- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver!
- Você é louco?
- Não, sou poeta.

Mario Quintana, em A vaca e o hipogrifo

domingo, 6 de abril de 2008

A Alma do Vinho


A alma do vinho assim cantava nas garrafas:
"Homem, ó deserdado amigo, eu te compus,
Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!

Bem sei quanto custou, na colina incendida,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,

Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À goela do homem que já trabalhou demais,
E sei peito bastante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.

Não ouves retirar a domingueira toada
E esperanças chalrar em meu seio, febris?
Cotovelos na mesa a manga arregaçada,
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:

Hei de acender-te da esposa embevecida;
A teu filho farei a força e a cor
E serei para tão terno atleta da vida
Como o óleo e os tendões enrija ao lutador.

Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor!"

Charles Baudelaire

(Tradução de Guilherme de Almeida e Ivan Junqueira)

Praia





Nuvem, caravela branca
no ar azul do meio-dia:
- quem te viu como eu te via?

Rolavam trovões escuros
pela vertente dos montes.
Tremeram súbitas fontes.

Depois, ficou tudo triste
como o nome dos defuntos:
mar e céu morreram juntos.

Vinha o vento do mar alto
e levantava as areias,
sem ver como estavam cheias

de tanta coisa esquecida,
pisada por tantos passos,
quebrada em tantos pedaços!

Por onde ficou teu corpo,
- ilusão de claridade -
quando se fez tempestade?

Nuvem, caravela branca,
nunca mais há meio-dia?

(Já nem sei como te via!)


Cecilia Meireles

sábado, 5 de abril de 2008

Neologismo


*


Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.



(Manuel Bandeira)

O Sertanejo Falando

1
"A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.
2
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso:
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho."

João Cabral de Melo Neto

.



Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.

Minha alma imortal,
Cumpre a tua jura
Seja o sol estival
Ou a noite pura.

Pois tu me liberas
Das humanas quimeras,
Dos anseios vãos!
Tu voas então...

— Jamais a esperança.
Sem movimento.
Ciência e paciência,
O suplício é lento.

Que venha a manhã,
Com brasas de satã,
O dever
É vosso ardor.

Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.

Arthur Rimbaud

Canção da Torre Mais Alta




Mocidade presa
A tudo oprimida
Por delicadeza
Eu perdi a vida.
Ah! Que o tempo venha
Em que a alma se empenha.

Eu me disse: cessa,
Que ninguém te veja:
E sem a promessa
De algum bem que seja.
A ti só aspiro
Augusto retiro.

Tamanha paciência
Não me hei de esquecer.
Temor e dolência,
Aos céus fiz erguer.
E esta sede estranha
A ofuscar-me a entranha.

Qual o Prado imenso
Condenado a olvido,
Que cresce florido
De joio e de incenso
Ao feroz zunzum das
Moscas imundas.




(Arthur Rimbaud)

Evocação do Recife



Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
- Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!

A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
- Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
- Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.

Manuel Bandeira

Foto de Felipe Ferreira

Para Umas Noites Que Andam Fazendo


deixe eu abrir a porta
quero ver se a noite vai bem

quem sabe a lua lua
ou nos sonhos crianças
sombras murmuram amém

deixa eu ver quem some antes
a nuvem a estrela ou ninguém

p. leminski

Lua Adversa



Tenho fases, como a lua
fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...

Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha...

Fases que vão e que vêm,
num secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)

No dia de alguém ser meu,
Não é dia de eu ser sua...
E, quando chegar esse dia,
o outro desapareceu...


(Cecília Meireles)

BEM NO FUNDO


No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela - silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas."


Paulo Leminski

sexta-feira, 4 de abril de 2008

O Albatroz


Tradução de Guilherme de Almeida

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico em cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
A asa de gigante impedem-no de andar.
.
Charles Baudelaire

O Último brinde

Bebo à casa arruinada,
às dores da minha vida,
à solidão, lado a lado
e a ti também eu bebo –

aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou



(Anna Akhmátova)

.


Não estás mais entre os vivos.
Da neve não podes erguer-te.
Vinte e oito baionetadas.
Cinco buracos de bala.
Amarga camisa nova
cosi para o meu amado.

Esta terra russa gosta,
gosta do gosto de sangue.



16/8/1921


(Anna Akhmátova)

.


Tarde da noite, em minha mesinha,
a página está irremediavelmente branca.
As mimosas cheiram a Nice e a mormaço;
à luz da lua voa um grande pássaro.

Enquanto faço as tranças para ir deitar –
como se amanhã ainda fosse usar tranças –
olhos, sem suspirar pela janela,
para o mar e as suas brancas dunas.
Mas que poder tem esse homem
que nem sequer me pede ternura...
Mal posso erguer as pálpebras cansadas
quando ele pronuncia o meu nome.



(Anna Akhmátova, )

.


Ele gostava de três coisas neste mundo:
o coro das vésperas, pavões brancos
e mapas da América já bem gastos.
Não gostava de crianças chorando,
nem de chá com geléia de framboesa
e nem de mulheres histéricas
...e eu era a mulher dele.

9/11/1911


(Ana Akhmátova)


quinta-feira, 3 de abril de 2008

.


um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto.

p. leminski


.


Lábios cerrados,
nem um grito soltará minha boca
mordida até sangrar.

Amarra-me a um cometa,
como à cauda de um cavalo
e chicoteia!

Que meu corpo se estraçalhe
nos dentes das estrelas.


(Maiakóvski)

No caminho



Na primeira noite
Eles se aproximam
E colhem uma flor
Do nosso jardim

E não dizemos nada.

Na segunda noite
Ja não se escondem:
Pisam as flores,
Matam nosso cão

E não dizemos nada.

Até que um dia
O mais frágil deles
Entra sozinho em nossa casa,
Rouba-nos a lua e,
Conhecendo nosso medo,
Arranca-nos a voz da garganta
E porque não dissemos nada,

Já não podemos dizer nada.


(Maiakóvski)

Dedução



Não acabarão com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.

Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo
firme,
fiel
e verdadeiramente.



(Maiakóvski)

Tu






Entraste.
A sério, olhaste
a estatura,
o bramido
e simplesmente adivinhaste:
uma criança.
Tomaste,
arrancaste-me o coração
e simplesmente foste com ele jogar
como uma menina com sua bola.
E todas,
como se vissem um milagre,
senhoras e senhorias exclamaram:
- A esse amá-lo?
Se se atira em cima,
derruba a gente!
Ela, com certeza, é domadora!
Por certo, saiu duma jaula!
E eu júbilo
esqueci o julgo.
Louco de alegria
saltava
como em casamento de índio,
tão leve, tão bem me sentia.



(Maiakóvski)

Aventura


AVENTURA


A tarde ardia com cem sóis.
O verão rolava em julho.
O calor se enrolava
no ar e nos lençóis
da datcha onde eu estava.
Na colina de Púchkino, corcunda,
o monte Akula,
e ao pé do monte
a aldeia enruga
a casca dos telhados.
E atrás da aldeia,
um buraco,
e no buraco, todo dia,
o mesmo ato:
o sol descia
lento e exato.
E de manhã
outra vez
por toda parte
lá estava o sol
escarlate.
Dia após dia
isto
começou a irritar-me
terrivelmente.
Um dia me enfureço a tal ponto
que, de pavor, tudo empalidece.
E grito ao sol:
“Desce!
Chega de vadiar nessa fornalha”
E grito ao sol:
“Parasita!
Você, aí, a flanar pelos ares,
e eu, aqui, cheio de tinta,
com a cara nos cartazes!”
E grito ao sol:
”Espere!
Ouça, topete de ouro,
e se em lugar
desse ocaso de paxá
você baixar em casa
para um chá?”
Que mosca me mordeu!
É o meu fim!
Para mim
sem perder tempo
o sol
alargando os raios-passos
avança pelo campo.
Não quero mostrar medo.
Recuo para o quarto.
Seus olhos brilham no jardim.
Avançam mais.
Pelas janelas,
pelas portas,
pelas frestas,
a massa
solar vem abaixo
e invade a minha casa.
Recobrando o fôlego,
me diz o sol com voz de baixo:
“Pela primeira vez recolho o fogo,
desde que o mundo foi criado.
Você me chamou?
Apanhe o chá,
pegue a compota, poeta!”
Lágrimas na ponta dos olhos
-- o calor me fazia desvairar—
eu lhe mostro
o samovar:
“Pois bem
sente-se astro!”
Quem me mandou gritar ao sol
insolências sem conta?
Contrafeito
me sento numa ponta
do banco e espero a conta
com um frio no peito.
Mas uma estranha claridade
fluía sobre o quarto
e esquecendo os cuidados
começo
pouco a pouco
a palestrar com o astro.
Falo
disso e daquilo,
como me cansa a Rosta¹,
etc.
E o sol:
”Está certo,
mas não se desgoste,
não pinte as coisas tão pretas.
E eu? Você pensa
que brilhar
é fácil?
Prove, pra ver!
Mas quando se começa
é preciso prosseguir
e a gente vai e brilha pra valer!”
Conversamos até a noite
ou até o que, antes, eram trevas.
Como falar, ali, de sombras?
Ficamos íntimos,
os dois.
Logo,
com desassombro,
estou batendo no seu ombro.
E o sol, por fim:
“Somos amigos
pra sempre, eu de você,
você de mim.
Vamos, poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos.”
O muro das sombras,prisão das trevas,
desaba sob o obus
dos nossos sóis de duas bocas.
Confusão de poesia e luz,
chamas por toda parte.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.
Brilhar pra sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
gente é pra brilhar,
que tudo mais vá pro inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.


Wladimir Maiakovski

Amar




Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...


Florbela Espanca

Definição de Poesia





Um risco maduro de assobio.
O trincar do gelo comprimido.
A noite, a folha sob o granizo.
Rouxinóis num dueto desafio.

Um doce ervilhal abandonado
A dor do universo numa fava.
Fígaro: das estantes e flautas -
Geada no canteiro, tombado.

Tudo o que para a noite releva
Nas funduras da casa de banho,
Trazer para o jardim uma estrela
Nas palmas úmidas, tiritando.

Mormaço: como pranchas na água,
Mais raso. Céu de bétulas, turvo.
Se dirá que as estrelas gargalham,
E no entanto o universo está surdo. "


Boris Pasternak

quarta-feira, 2 de abril de 2008

1912

Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.
Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.


1912



(Anna Akhmátova, )
)

Kiev, 1911.


Apertei as mãos sob o xale escuro...
“Por que estás tão pálida?”
- Porque hoje lhe dei a beber amargura
até que ele foi embora daqui embriagado.
Posso acaso esquecê-lo? Saiu daqui cambaleando,
sua boca torcendo-se dolorosamente...
Desci correndo, sem nem me encostar no corrimão,
corri atrás dele até o portão.
Angustiada gritei: “Tudo não passou
de uma brincadeira. Se fores embora, morro”.
Sorriu docemente e, com um muxoxo terrível,
disse-me: “Não fique no vento”.



8/1/1911
Kiev



(Anna Akhmátova, )

Anna Akhmátova (dezembro de 1913 Tsárkoie Seló)


A verdadeira ternura não se confunde
com coisa alguma. É silenciosa.

Em vão envolves com cuidado

os meus ombros e meu colo nesta estola.
Em vão palavras carinhosas
dizes
sobre o nosso primeiro amor.

Como conheço bem esses insistentes
e insatisfeitos olhares teus.




Dezembro de 1913
Tsárkoie Seló


Anna Akhmátova,

A Noite



Vinte e um. Noite. Segunda-feira.
A silhueta da cidade na neblina.
Algum desocupado inventou
essa história de que há amor no mundo.
E por preguiça ou por tédio,
todos acreditaram nele e assim viveram:
esperando encontros, temendo ruturas
e cantando canções de amor.
Mas a outros será revelado o segredo
e sobre estes recairá o silêncio...
Eu tropecei nele casualmente e, desde então,
sinto-me como se estivesse doente.


1917

Petersburgo





Anna Akhmátova (Anna Andreyevna Gorenko, Rússia 1889-1966)

terça-feira, 1 de abril de 2008

Separação




Nem semanas nem meses - anos
levamos nos separando. Eis, finalmente,
o gelo da liberdade verdadeira
e as cinzentas guirlandas na fachada dos templos.

Não mais traições, não mais enganos,
e não me terás mais de ficar ouvindo até o amanhecer,
enquanto flui o riacho das provas
da minha mais perfeita inocência.


***

Anna Akhmátova (1940)

Meu Paraíso Perdido


Pelos entardeceres
vinhas à minha vida

e inteira te cobria minha idealidade,


destacando na tarde
o teu perfil perdido

por entre o milagroso canto de claridade

que era uma sombra
de ouro em meu isolamento

e deitava em meus sonhos
seu ponto de piedade.


E nas contemplações se tecia
no momento
suave e sereno,
cheio de suprema bondade.


A suavidade de idílio
dessa tarde chegava

com a límpida lenda
de teu olhar chegado.


Oh! a doce alegria que iluminou meu frágil paraíso perdido!




(Pablo Neruda - tradução: Thiago de Mello - do livro Cadernos de Temucos)

Tu eras também uma pequena folha


Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.

A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,

até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

*


Pablo Neruda
Em: Mulheres